sábado, 24 de agosto de 2024

Não só de festas vivia a Penha do Passado

 Em princípios de dezembro de 1918, por ocasião da pandemia de gripe espanhola provocada nos campos de batalha da primeira grande guerra mundial, o vigário da Penha, Padre Oscar Chagas de Azeredo, registrou no Livro do Tombo da Paróquia, apontamentos de um relatório encaminhado ao exmo. Sr. Arcebispo sobre os trabalhos realizados na Penha no sentido de combater esse terrível mal:

A epidemia que nas últimas sete semanas encheu de luto a Capital paulista, não poupou o pacato distrito da Penha; uma campanha porém de trabalhos e dedicação enfrentou energicamente o mal. Sob os auspícios do exmo. Sr. D. Duarte, Arcebispo Metropolitano, tratou-se de organizar, em boa hora, o serviço que requeria a maior energia e a maior calma. À medida que os casos se iam aumentando, cresciam os cuidados e o desvelo por parte das autoridades e do povo da Penha. Desapareceu toda a distinção de nacionalidade, de classes e de crenças. Graças aos esforços do Monsenhor Silveira Barradas, instalou-se à rua da Penha, em um dos salões, generosamente cedido pelo Major Ângelo Zanchi digníssimo chefe político, o Posto Português de Socorros, que durante todo o tempo em que reinou a epidemia, prestou relevantíssimos serviços aos doentes tanto em medicamentos com em gêneros (alimentícios). Desde o dia 31 de outubro, em que se abriu o posto, prestavam abnegados serviços os senhores Drs. Brandão, Januário Baptista, Cresciuma Paranhos e os doutorandos Heitor Valery Antonio di Paiva Foz e Augusto de Figueiredo, aos quais se uniram abnegadamente diversas outras pessoas, nomeadamente D. Sara Costa, D. Vicentina Camargo do Amaral, D. Maria Barradas de Lara e D. Carolina Queiroz. O Posto dispunha de um automóvel, de que se serviam os médicos nas suas visitas domiciliares; achava-se aberto das 8 às 19 horas recebendo a todos com amabilidade e servindo-os com presteza. O movimento do Posto era contínuo sendo muitíssimas as visitas médicas e as pessoas socorridas em medicamentos e gêneros. Arrostando as dificuldades dos dias chuvosos, subiam e desciam os médicos, com a exma. S. Sara, ladeira de difícil trânsito, ziguezagueando muitas vezes o Tietê. Isso arrancou a gratidão dos moradores das margens do rio, os quais em homenagem à Dona Sara, que a tudo dava vida por seu temperamento sempre risonho, deram a um de seus postos o nome de “Posto de D. Sara”. Em benefício dos enfermos despendeu o Posto nada menos de 10:000#000. Grata a todos esses serviços a população da Penha no dia 24 de novembro, em que foi fechado o posto, organizou uma festinha modesta mas cordial em homenagem ao exmo Sr. Presidente da Câmara, apresentando em seguida um ofício de agradecimento assinado por todas as pessoas de destaque da Penha. Como, porém, entre os doentes, muitos havia que não poderiam receber em casa o tratamento necessário por falta de recursos pela gravidade do mal, o exmo Sr. Arcebispo obteve  do governo as chaves do grupo escolar (hoje “Santos Dumont”) e incumbiu aos Srs. Padres Redentoristas de instalar lá um hospital provisório para os homens; as Irmãs Vicentinas, a pedido do Sr. Arcebispo, cederam o seu Colégio, que ficou servindo de hospital provisório para as mulheres. Como era de esperar não tardaram os enfermos em serem transportados para lá com todo o cuidado em um automóvel, gentilmente cedido, para esse fim, pela repartição de águas por intermédio do Sr. Cândido Motta, que a isto foi instado por D. Vicentina Camargo do Amaral. O hospital provisório dos homens esteve sob a direção médica do doutorando Ulysses da Silva, mais tarde substituído pelo doutorando Armando de Campos, os quais além da medicação hospitalar não recusaram visitas a muitos enfermos, que os chamavam às suas habi

ações, por vezes, bem distantes. O hospital do Grupo foi aberto no dia 3 de Novembro e fechado aos 20 do mesmo mês; recebeu 50 doentes, dos quais faleceram 11 e foram removidos 3 para os hospitais da Capital. Por intermédio do Dr. Arnaldo Vieira de Carvalho, foram pelo governo fornecidos os equipamentos necessários, que faltavam mesmo depois das ofertas generosas dos padres redentoristas e de outras pessoas piedosas. Os padres redentoristas foram incumbidos dos serviços espirituais nos hospitais. Mais de uma vez os enfermos receberam solene e devotamente a sagrada comunhão, rezando em voz alta os atos de preparação e de ação de graças. A mocidade briosa da Penha ofereceu-se generosamente para o cargo de enfermeiros; entre eles destacam-se os seguintes: José Pedro Ferreira Filho, Benedito de Macedo, José Rafael da Motta, José Ferraz, Roberto Rebecchi, Aníbal Boemer da Silva, Augusto Carezzi e Francisco Pezzold, alguns dos quais adoeceram no desempenho da nobre tarefa. Junto aos enfermeiros dedicaram-se ao cuidado do hospital as senhoras D. Antonia Pedroso, D. Maria da Glória, D. Maria Schwenk, D. Mercedes Silvério e D. Áurea Bastos, que sacrificaram noites inteiras para que nada faltasse às vítimas da gripe. Não obstante ao grande temor que o povo tem geralmente aos hospitais todos mostram-se agora gratos pelo ótimo tratamento que lá receberam.

Não menos movimentado foi o hospital das mulheres instalado no Colégio das Irmãs Vicentinas (hoje “Colégio São Vivente). Dia e noite velavam esses anjos de caridade. Diretora e noviças, à cabeceira das doentes, sempre solícitas em diminuir as dores às infelizes. Quatro delas foram atingidas pela gripe, porém não houve caso grave. Esse hospital foi aberto no dia 1 de Novembro e fechado a 1 de Dezembro. A medicação das doentes foi confiada ao Dr. Benjamin dos Reis, que além das enfermas hospitalizadas, distendeu sua ação a muitas famílias que o chamavam confiadas na sua perícia médica e na sua dedicação digna dos melhores encômios.

Esse hospital provisório recebeu 78 enfermas, das quais 46 adultas e 32 crianças; faleceram sete pessoas, sendo três adultas e quatro crianças. Todas as enfermas receberam mais vezes com edificante piedade os sacramentos da Igreja, que as confortavam em suas penas.

Com o mesmo desinteresse material trabalharam incansavelmente os padres redentoristas que não só atendiam aos chamados dos doentes; de dia e de noite, mas até, iam procurando de casa em casa os enfermos para levar-lhes os socorros materiais e espirituais. Era esse quase o único meio de auxiliar famílias inteiras, muitas vezes isoladas nas olarias e nos sítios, sem terem quem delas se compadecesse. Incansável mostrou-se o R. P. Antão Jorge, acompanhando sempre os médicos às casas dos enfermos, servindo-lhes de guia nas ruas da paróquia e em particular nos cortiços quase impenetráveis em muitos lados da nossa Penha; não menos infatigáveis mostraram-se os Revmos. P. Oscar Chagas, P. José Francisco, Pelagio Sauter e Henrique Barros, percorrendo diariamente a paróquia em todas as suas direções, levando aos doentes os vales generosamente cedidos pelo exmo Sr. Arcebispo e mais ainda os confortos da Religião, de sorte que se pode afirmar com segurança não haver falecido na Penha pessoa alguma católica, atacada de gripe sem os últimos sacramentos.Com exceção de alguns espíritas, todos receberam atenciosamente o padre e o médico. A atividade dos padres estendia-se muito além dos limites da paróquia indo até os distritos do Braz e de São Bernardo. Tendo-se aumentado consideravelmente o número de gripados julgou-se necessário convidar o P. José Afonso para o serviço espiritual; ele chegou em meados de novembro e visitou abnegadamente os doentes da Penha e dos bairros do Cangaíba, Vila Sant’Ana, Ponte Grande e Maranhão. De um modo particular trabalhou na primeira semana o exmo. Mons. Barradas, vitimado infelizmente pela gripe que o prostrou no leito até a cessação da epidemia.

Junto com os padres trabalharam ainda os vicentinos, em número de nove, distribuindo vales e chamando os padres quando julgavam necessária a administração dos sacramentos; infelizmente mais da metade desses auxiliares foram atingidos pela enfermidade. Ao lado dos vicentinos, mostrou-se de uma atividade heróica a exma. D. Carolina Queiroz.

A pedido do Dr. Edmur Queiroz cedeu o Governo grande número de caixões para adultos e crianças, os quais foram depositados no Salão São Geraldo e autorizou o vigário a utilizar-se de todos os meios de condução para o transporte dos cadáveres ao cemitério. Em rasgo de humanidade mais vezes visitaram os hospitais o Sr. Presidente do Estado Dr. Altino Arantes, o exmo. Sr. Arcebispo Metropolitano D. Duarte Leopoldo e Silva, o Dr. Arnaldo Vieira de Carvalho consolando os doentes e procurando suavizar-lhes os sofrimentos. As despesas foram cobertas pelo exmo Sr. Arcebispo. Para adjutório foram dados os seguintes donativos: PP. Redentoristas 200#000, Pia União das Filhas de Maria 100#000, Dr. Hildebrando Cintra 100#000, Sr. Antonio Nietto 100#000; D. Carolina Queiros 80#000; por intermédio das Irmãs Vicentinas 50#000; por intermédio do vigário 50#000; D. Jandira Duarte Soares 50#000; Cel. Jeremias Sodré 20#000; diversos 20#000; Durante o tempo da epidemia, isto é do dia 20 de Outubro até o dia 1º. de Dezembro foram visitadas 1.328 famílias, socorridos 2.913 enfermos em domicílio, visitados 3.313 enfermos, socorridos nos postos 2240 doentes, hospitalizados 185. Foram feitas 1.158 visitas médicas, distribuídos 149 vales de gêneros, 1.225 vales de carne, 690 vales de medicamentos, 1050 pratos de sopa. Foram ouvidas 185 confissões, feitos casamentos, administradas 79 unções. O total das despesas pelo Sr. Arcebispo foi de 12:220#800.

A par desses esforços muitas preces públicas foram feitas para a cessação do terrível flagelo; nos três primeiros dias da semana cantava-se a ladainha de todos os santos, saindo a procissão da Matriz até a Igreja do Rosário, onde se fazia uma pequena reza em louvor de São Sebastião. As pessoas que não estavam de todo ocupadas com enfermos compareciam às procissões com toda a regularidade; muitas comunhões gerais foram feitas nessa intenção. Aos esforços humanos uniu Deus sua graça, pois de quase quatro mil gripados morreram noventa e três. Existem ainda alguns casos de recaída.

 

Conforme a ordem do exmo. Sr. Arcebispo Metropolitano houve na Penha solene Te Deum de ação de graças pela cessação do duplo flagelo da guerra e da epidemia. Antes do Te Deum fiz uma alocução apropriada ao ato. Em seguida foi dada a benção do Santíssimo”.

 

Em sua missão de Padroeira da Cidade de São Paulo, Nossa Senhora da Penha quer ter consigo seus devotos. Estes, arregaçando as mangas, precisam se colocar a serviço da cidade e daqueles que, nela, mais precisam.

Postado por José Morelli

                 

          

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