Em princípios de dezembro de 1918, por ocasião da pandemia de gripe espanhola provocada nos campos de batalha da primeira grande guerra mundial, o vigário da Penha, Padre Oscar Chagas de Azeredo, registrou no Livro do Tombo da Paróquia, apontamentos de um relatório encaminhado ao exmo. Sr. Arcebispo sobre os trabalhos realizados na Penha no sentido de combater esse terrível mal:
A epidemia que nas
últimas sete semanas encheu de luto a Capital paulista, não poupou o pacato
distrito da Penha; uma campanha porém de trabalhos e dedicação enfrentou
energicamente o mal. Sob os auspícios do exmo. Sr. D. Duarte, Arcebispo
Metropolitano, tratou-se de organizar, em boa hora, o serviço que requeria a
maior energia e a maior calma. À medida que os casos se iam aumentando,
cresciam os cuidados e o desvelo por parte das autoridades e do povo da Penha. Desapareceu
toda a distinção de nacionalidade, de classes e de crenças. Graças aos esforços
do Monsenhor Silveira Barradas, instalou-se à rua da Penha, em um dos salões,
generosamente cedido pelo Major Ângelo Zanchi digníssimo chefe político, o
Posto Português de Socorros, que durante todo o tempo em que reinou a epidemia,
prestou relevantíssimos serviços aos doentes tanto em medicamentos com em
gêneros (alimentícios). Desde o dia 31 de outubro, em que se abriu o posto,
prestavam abnegados serviços os senhores Drs. Brandão, Januário Baptista,
Cresciuma Paranhos e os doutorandos Heitor Valery Antonio di Paiva Foz e Augusto
de Figueiredo, aos quais se uniram abnegadamente diversas outras pessoas,
nomeadamente D. Sara Costa, D. Vicentina Camargo do Amaral, D. Maria Barradas
de Lara e D. Carolina Queiroz. O Posto dispunha de um automóvel, de que se
serviam os médicos nas suas visitas domiciliares; achava-se aberto das 8 às 19
horas recebendo a todos com amabilidade e servindo-os com presteza. O movimento
do Posto era contínuo sendo muitíssimas as visitas médicas e as pessoas
socorridas em medicamentos e gêneros. Arrostando as dificuldades dos dias
chuvosos, subiam e desciam os médicos, com a exma. S. Sara, ladeira de difícil
trânsito, ziguezagueando muitas vezes o Tietê. Isso arrancou a gratidão dos
moradores das margens do rio, os quais em homenagem à Dona Sara, que a tudo
dava vida por seu temperamento sempre risonho, deram a um de seus postos o nome
de “Posto de D. Sara”. Em benefício dos enfermos despendeu o Posto nada menos
de 10:000#000. Grata a todos esses serviços a população da Penha no dia 24 de
novembro, em que foi fechado o posto, organizou uma festinha modesta mas
cordial em homenagem ao exmo Sr. Presidente da Câmara, apresentando em seguida
um ofício de agradecimento assinado por todas as pessoas de destaque da Penha.
Como, porém, entre os doentes, muitos havia que não poderiam receber em casa o
tratamento necessário por falta de recursos pela gravidade do mal, o exmo Sr.
Arcebispo obteve do governo as chaves do
grupo escolar (hoje “Santos Dumont”) e incumbiu aos Srs. Padres Redentoristas
de instalar lá um hospital provisório para os homens; as Irmãs Vicentinas, a
pedido do Sr. Arcebispo, cederam o seu Colégio, que ficou servindo de hospital
provisório para as mulheres. Como era de esperar não tardaram os enfermos em
serem transportados para lá com todo o cuidado em um automóvel, gentilmente
cedido, para esse fim, pela repartição de águas por intermédio do Sr. Cândido
Motta, que a isto foi instado por D. Vicentina Camargo do Amaral. O hospital
provisório dos homens esteve sob a direção médica do doutorando Ulysses da
Silva, mais tarde substituído pelo doutorando Armando de Campos, os quais além
da medicação hospitalar não recusaram visitas a muitos enfermos, que os
chamavam às suas habi
ações, por vezes, bem
distantes. O hospital do Grupo foi aberto no dia 3 de Novembro e fechado aos 20
do mesmo mês; recebeu 50 doentes, dos quais faleceram 11 e foram removidos 3
para os hospitais da Capital. Por intermédio do Dr. Arnaldo Vieira de Carvalho,
foram pelo governo fornecidos os equipamentos necessários, que faltavam mesmo
depois das ofertas generosas dos padres redentoristas e de outras pessoas
piedosas. Os padres redentoristas foram incumbidos dos serviços espirituais nos
hospitais. Mais de uma vez os enfermos receberam solene e devotamente a sagrada
comunhão, rezando em voz alta os atos de preparação e de ação de graças. A
mocidade briosa da Penha ofereceu-se generosamente para o cargo de enfermeiros;
entre eles destacam-se os seguintes: José Pedro Ferreira Filho, Benedito de
Macedo, José Rafael da Motta, José Ferraz, Roberto Rebecchi, Aníbal Boemer da
Silva, Augusto Carezzi e Francisco Pezzold, alguns dos quais adoeceram no
desempenho da nobre tarefa. Junto aos enfermeiros dedicaram-se ao cuidado do
hospital as senhoras D. Antonia Pedroso, D. Maria da Glória, D. Maria Schwenk,
D. Mercedes Silvério e D. Áurea Bastos, que sacrificaram noites inteiras para
que nada faltasse às vítimas da gripe. Não obstante ao grande temor que o povo
tem geralmente aos hospitais todos mostram-se agora gratos pelo ótimo
tratamento que lá receberam.
Não menos movimentado
foi o hospital das mulheres instalado no Colégio das Irmãs Vicentinas (hoje
“Colégio São Vivente). Dia e noite velavam esses anjos de caridade. Diretora e
noviças, à cabeceira das doentes, sempre solícitas em diminuir as dores às
infelizes. Quatro delas foram atingidas pela gripe, porém não houve caso grave.
Esse hospital foi aberto no dia 1 de Novembro e fechado a 1 de Dezembro. A
medicação das doentes foi confiada ao Dr. Benjamin dos Reis, que além das
enfermas hospitalizadas, distendeu sua ação a muitas famílias que o chamavam
confiadas na sua perícia médica e na sua dedicação digna dos melhores encômios.
Esse hospital
provisório recebeu 78 enfermas, das quais 46 adultas e 32 crianças; faleceram
sete pessoas, sendo três adultas e quatro crianças. Todas as enfermas receberam
mais vezes com edificante piedade os sacramentos da Igreja, que as confortavam
em suas penas.
Com o mesmo
desinteresse material trabalharam incansavelmente os padres redentoristas que
não só atendiam aos chamados dos doentes; de dia e de noite, mas até, iam
procurando de casa em casa os enfermos para levar-lhes os socorros materiais e
espirituais. Era esse quase o único meio de auxiliar famílias inteiras, muitas
vezes isoladas nas olarias e nos sítios, sem terem quem delas se compadecesse.
Incansável mostrou-se o R. P. Antão Jorge, acompanhando sempre os médicos às
casas dos enfermos, servindo-lhes de guia nas ruas da paróquia e em particular
nos cortiços quase impenetráveis em muitos lados da nossa Penha; não menos infatigáveis
mostraram-se os Revmos. P. Oscar Chagas, P. José Francisco, Pelagio Sauter e
Henrique Barros, percorrendo diariamente a paróquia em todas as suas direções,
levando aos doentes os vales generosamente cedidos pelo exmo Sr. Arcebispo e
mais ainda os confortos da Religião, de sorte que se pode afirmar com segurança
não haver falecido na Penha pessoa alguma católica, atacada de gripe sem os
últimos sacramentos.Com exceção de alguns espíritas, todos receberam
atenciosamente o padre e o médico. A atividade dos padres estendia-se muito
além dos limites da paróquia indo até os distritos do Braz e de São Bernardo.
Tendo-se aumentado consideravelmente o número de gripados julgou-se necessário
convidar o P. José Afonso para o serviço espiritual; ele chegou em meados de
novembro e visitou abnegadamente os doentes da Penha e dos bairros do Cangaíba,
Vila Sant’Ana, Ponte Grande e Maranhão. De um modo particular trabalhou na
primeira semana o exmo. Mons. Barradas, vitimado infelizmente pela gripe que o
prostrou no leito até a cessação da epidemia.
Junto com os padres
trabalharam ainda os vicentinos, em número de nove, distribuindo vales e
chamando os padres quando julgavam necessária a administração dos sacramentos;
infelizmente mais da metade desses auxiliares foram atingidos pela enfermidade.
Ao lado dos vicentinos, mostrou-se de uma atividade heróica a exma. D. Carolina
Queiroz.
A pedido do Dr. Edmur
Queiroz cedeu o Governo grande número de caixões para adultos e crianças, os
quais foram depositados no Salão São Geraldo e autorizou o vigário a
utilizar-se de todos os meios de condução para o transporte dos cadáveres ao
cemitério. Em rasgo de humanidade mais vezes visitaram os hospitais o Sr.
Presidente do Estado Dr. Altino Arantes, o exmo. Sr. Arcebispo Metropolitano D.
Duarte Leopoldo e Silva, o Dr. Arnaldo Vieira de Carvalho consolando os doentes
e procurando suavizar-lhes os sofrimentos. As despesas foram cobertas pelo exmo
Sr. Arcebispo. Para adjutório foram dados os seguintes donativos: PP.
Redentoristas 200#000, Pia União das Filhas de Maria 100#000, Dr. Hildebrando
Cintra 100#000, Sr. Antonio Nietto 100#000; D. Carolina Queiros 80#000; por intermédio
das Irmãs Vicentinas 50#000; por intermédio do vigário 50#000; D. Jandira
Duarte Soares 50#000; Cel. Jeremias Sodré 20#000; diversos 20#000; Durante o
tempo da epidemia, isto é do dia 20 de Outubro até o dia 1º. de Dezembro foram
visitadas 1.328 famílias, socorridos 2.913 enfermos em domicílio, visitados
3.313 enfermos, socorridos nos postos 2240 doentes, hospitalizados 185. Foram
feitas 1.158 visitas médicas, distribuídos 149 vales de gêneros, 1.225 vales de
carne, 690 vales de medicamentos, 1050 pratos de sopa. Foram ouvidas 185
confissões, feitos casamentos, administradas 79 unções. O total das despesas
pelo Sr. Arcebispo foi de 12:220#800.
A par desses esforços
muitas preces públicas foram feitas para a cessação do terrível flagelo; nos
três primeiros dias da semana cantava-se a ladainha de todos os santos, saindo
a procissão da Matriz até a Igreja do Rosário, onde se fazia uma pequena reza
em louvor de São Sebastião. As pessoas que não estavam de todo ocupadas com
enfermos compareciam às procissões com toda a regularidade; muitas comunhões
gerais foram feitas nessa intenção. Aos esforços humanos uniu Deus sua graça,
pois de quase quatro mil gripados morreram noventa e três. Existem ainda alguns
casos de recaída.
Conforme a ordem do
exmo. Sr. Arcebispo Metropolitano houve na Penha solene Te Deum de ação de
graças pela cessação do duplo flagelo da guerra e da epidemia. Antes do Te Deum
fiz uma alocução apropriada ao ato. Em seguida foi dada a benção do Santíssimo”.
Em
sua missão de Padroeira da Cidade de São Paulo, Nossa Senhora da Penha quer ter
consigo seus devotos. Estes, arregaçando as mangas, precisam se colocar a
serviço da cidade e daqueles que, nela, mais precisam.
Postado por José Morelli
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