sábado, 24 de agosto de 2024

Procissão rima com reflexão

 Hoje, 30 de setembro de 2005, antes que termine o mês em que os penhenses festejam o seu bairro, juntamente com sua Padroeira e da cidade de São Paulo, NOSSA SENHORA DA PENHA, gostaria de registrar alguns pensamentos que me vieram à mente, despertados pelo que vi e senti enquanto participava da procissão do dia 8. Neste ano, a organização dessa parte das festividades ficou à cargo de dois segmentos da sociedade civil do bairro: a Distrital Penha da Associação Comercial e o Viva-Penha, além do apoio indispensável das lideranças da paróquia e dos fiéis devotos de Nossa Senhora, que prestigiaram o acontecimento, seguindo uma tradição que ainda persiste apesar das dificuldades da chamada vida moderna.

A procissão estava marcada para sair da basílica às 20 horas. Antes, com início às 19 horas, haveria a tradicional missa celebrada pelo bispo diocesano Dom Fernando Legal. Nos anos anteriores, essa missa acontecia sempre depois da procissão. Como já era de se esperar, a cerimônia se alongou além do horário previsto. Só por volta das 21 horas é que a procissão foi se formando e dando início ao seu ritual, expressão da fé e da oração dos que ali se encontravam para dela participar.

A Penha é São Paulo, a maior metrópole da América Latina. Não são poucos os obstáculos quando um evento ocupa as ruas dessa cidade dificultando o fluir do trânsito, direito de tantos de chegarem a seus destinos. Porém, é próprio de toda regra admitir exceções. Desta forma, neste ano, o trajeto restaurou o antigo costume de a procissão percorrer as ruas mais centrais da Penha, área representativa do bairro em seu todo, apesar de ocupada, em sua maior parte, por lojas e agências bancárias. Mais do que em outras, a cidade de São Paulo é palco de longas procissões: filas de pessoas em hospitais, bancos, repartições públicas, postos do INSS; filas intermináveis de carros parados ou em marcha lenta em quilômetros e quilômetros de congestionamentos, oportunidades de as pessoas refletirem um pouco na vida, em meio a tantos corres-corres.  A procissão religiosa é carregada de significados. O fiel intui que se trata de um ato rico de sentido, capaz de melhorá-lo em seus relacionamentos: consigo mesmo, com o próximo, com e meio ambiente em que vive e com Deus. Nela, todos se igualam, um não é maior do que o outro. Todos descem ao nível das ruas e caminham pisando no mesmo chão e se dirigindo para um mesmo lugar. Uma oportunidade de se despojarem de si mesmos, de suas posições hierárquicas e de se colocarem uns perante aos outros como simples seres humanos mortais. Numa sociedade que incita ao individualismo, a procissão é um apelo à união e à busca em conjunto de objetivos e destinos comuns. “Quando duas ou mais pessoas se reúnem em meu nome, Eu estou no meio delas”... assim diz Jesus no Evangelho. O valor de uma procissão é a de um sacramental. Cada um vive o que faz na intensidade de sua fé. O que vale são as intenções íntimas. Se são de enganar, de se mostrar perante aos outros estão na contramão do que deve ser. Participar da procissão é testemunhar o próprio pensamento e sentimento, é mostrar-se sem medos ou vergonha de expor-se aos juízos dos outros, é reconhecer-se na própria dignidade e necessidade.

 

A procissão da Festa de Nossa Senhora da Penha, deste ano, teve à sua frente uma banda, composta de jovens pertencentes a uma escola municipal, especialmente convidada. Em seguida, vinham um carro de som, crianças vestidas de anjos e um cortejo de seminaristas, padres e o vigário Monsenhor Calazans, acompanhando o bispo.  Atrás do cortejo clerical, vinha o carro-andor com a imagem da Padroeira. Ao povo em geral coube ocupar o lugar após a imagem. O carro que devia acompanhar o povo e ajudá-lo no entoar dos cânticos e nas orações quebrou-se na última hora e, assim, mais uma vez, o povo ficou desprovido do que lhe era devido. Da forma como podia, este tentava remediar, através da iniciativa de pequenos grupos, que ora rezava alguma dezena do terço ora cantava algum cântico ou dava vivas à Nossa Senhora. O que transparecia era a compenetração e a seriedade com que todos ali se encontravam. Alguns traziam nas mãos velas acesas que, protegidas do vento por finas folhas de papelão branco, deixavam transparecer a luz que reluzia de suas cintilantes chamas.

Em vários pontos do trajeto da procissão, grandes quantidades de bexigas azuis enchidas com gás foram colocadas a uma certa altura, dentro de volumosos sacos, confeccionados em tecido fino e transparente. Quando o carro-andor passava debaixo deles, estes eram rompidos e as bexigas subiam, à semelhança das orações que eram feitas por todos. Alguns dos moradores de casas no caminho da procissão ornaram suas sacadas ou janelas com colchas, flores e velas acesas, a fim de saudar a passagem do cortejo e da imagem da padroeira, estabelecendo-se um elo entre os moradores do bairro, suas casas e Aquela que lhes representa a proteção de Deus na Terra. Este é mais um dos sentidos das procissões, que é o de marcar os diversos lugares com a constante presença do sagrado: ruas e praças, escolas, teatro, bibliotecas, fórum, lojas, indústrias, bancos, casas de moradia, prédios de apartamentos, shopping, locais de lazer e de esportes, posto de saúde, consultórios médicos, hospital, correio e outros lugares onde a população reside, trabalha, estuda, se diverte, cuida e ama, respondendo aos desafios que tem de enfrentar todos os dias o ano inteiro.

 Ao final, quando a procissão adentrava na rua Santo Afonso e se aproximava da basílica, o cortejo foi recepcionado com o início da queima de fogos, uma apoteose de estrondos, luzes e cores, que causou-me grande sobressalto, primeiro, impressionando-me os meus tímpanos e, logo em seguida, as minhas retinas que olhavam para o alto. Meus pensamentos se voltaram para os anos passados de minha infância, na década de 1950/60. Os padres redentoristas da província de São Paulo já completavam 50 anos de Penha e de Brasil. Nesse meio século de permanência, eles haviam conseguido grandes progressos: seminários menores em Aparecida, Goiás e no Rio Grande do Sul, noviciado em Pindamonhangaba, seminário maior em Tietê. Houve anos em que o número de sacerdotes ordenados eram 14/15 novos padres. O curso de pastoral desses recém-ordenados era aqui na Penha, um reforço a mais para o vigário que podia contar com toda essa ajuda no atendimento, tanto da paróquia como dos romeiros e visitantes, que para aqui vinham. Com relação à infra-estrutura para o bom funcionamento de todas as atividades pastorais, a reforma da matriz já estava totalmente concluída, o cinema São Geraldo também, oferecendo amplas salas para algumas das associações nelas se reunirem. A igreja do Rosário também colaborava com o seu espaço. Havia outras casas mais antigas, que abrigavam a Pia União, a Liga Católica e outros grupos. O Colégio São Vicente com o trabalho das irmãs e  participação de seus alunos e alunas também contribuíam. Com toda essa força, o nome de Nossa Senhora da Penha se difundia na cidade e o santuário atendia às demandas dos paroquianos e dos fiéis vindos de outros lugares, principalmente, nas ocasiões das festas de setembro.

Com tudo isso não deveria me admirar que essas festividades do passado, desde as novenas solenes às missas e procissão ocorressem com tanto brilho e atraíssem um número tão grande de pessoas. Recordo-me do coral com orquestra, da iluminação no interior da igreja e nas ruas, das novenas, dos pregadores missionários, dos dragões da independência que abriam as procissões com seus clarins, das bandas da força pública, da guarda civil ou da aeronáutica, que se revezavam de ano para ano, dos carros andores ornamentados pelas irmãs vicentinas, do som da Rádio Azul, da banda de música mantida pela paróquia... O ontem e o hoje se juntam em meus pensamentos, volto a olhar o movimento das pessoas, que já começam a se dispersar. Procissão rima com reflexão que, por sua vez, rima também com conversão.

 Postado por José Morelli

Nenhum comentário:

Postar um comentário